16 janeiro 2010

Marcas do Tempo

"Eu não dei por esta mudança/ tão simples, tão certa, tão fácil/ Em que espelho ficou perdida a minha face?" (Cecília Meireles)
Levantou-se da cama com dificuldade, fixou os pés no chão e se pôs a procurar seus óculos, sem os quais não enxergava praticamente nada. Estavam sobre um livro aberto em cima da escrivaninha. Decerto os deixara lá quando a leitura cedeu lugar ao sono.
As noites eram tristes, monótonas, e para que a solidão não a fizesse padecer, jamais dispensava a companhia agradável de bons livros, cujas histórias devolviam-lhe o ânimo que o tempo roubara.
Caminhando lentamente, com o passo quase ausente de tão pacato, entrou no banheiro, acendeu a luz e se pôs a observar sua extenuada imagem refletida no espelho. Olhar triste e vazio, pele enrugada, mãos pálidas e trêmulas, cabelos brancos "como a bruma", lábios secos e mudos.
Onde foi parar o corpo cheio de curvas, a pele lisa e macia, os olhos vivos, intrépidos?! Não sabia. Tampouco sabia se sua alma envelhecera junto ao corpo. É provável que sim, afinal, o espírito indagador e vigoroso de outrora emudeceu e perdeu a disposição que instigava seus movimentos e atitudes.
Sentiu-se similar a uma rosa murcha, sem atrativos, sem força, sem vida. O espelho lhe mostrou o que ela se recusava a enxergar. Preferia viver mergulhada na ilusão, hermética em sua intrínseca timidez, procurando, incessantemente, juventude por trás daqueles olhos obsoletos e alegria ao redor daquele sorriso medíocre.
Apagou a luz, tropeçou em sua melancolia e segurou com relativa firmeza a mão da velhice. Agora as duas eram uma só. Caminhou em direção à cama, colocou novamente o par de óculos sobre o livro semiaberto e adormeceu embalada por infindáveis reminiscências.

3 comentários:

J disse...

Pra não ser repetitivo, dizendo que amei, que tá perfeito e coisa e tal, cou dar uma de Copélia e dizer "prefiro não comentar", kkkkkk...

Vil Imundo disse...

Esplêndida narrativa!

Vinícius Rodovalho disse...

Lendo teu texto, lembrei dos eternos avisos de Augusto dos Anjos. O quanto a vida é efêmera e - triste realidade - a decomposição aguarda todos nós.

As mudanças são inevitáveis. E o fim também. Agora, quem vai sentir seus efeitos, somos nós, individualmente. Por isso é que é tão necessário estar bem consigo mesmo.

Quando a velhice e o fim chegarem, que tenhamos vivido bem.

Belo texto! :)

Postar um comentário